quinta-feira, 15 de maio de 2008

OS CAMINHOS DA DEMOCRATIZAÇAO DA UNIVERSIDADE

Maurício Tragtenberg*

Já é lugar comum situar a Universidade como o espaço onde se dá a produção e a reprodução de especialistas para ocuparem lugares na estrutura de mando na sociedade atual. É certo que, sob o capitalismo, ela é obrigada pela lógica própria do novo sistema de exploração racional do trabalho, a recrutar grandes massas de indivíduos selecionados severamente para o provimento de cargos. Ela é a formadora dos ‘recursos humanos’ para a burocracia das empresas privadas e do Poder Público.
É uma fábrica que ao mesmo tempo produz um núcleo de intelectuais ligados às prebendas burocráticas da classe dominante e cria um novo exército industrial de reserva, uma camada intelectual proletaróide similar às massas subempregadas do sistema.
A Universidade não pode ser vista no âmbito da ótica funcionalista de Althusser ou Bourdieu, como formadora de idéias e pessoas a ‘serviço de’, mas como parte de uma rede de interações entre os distintos mecanismos da superestrutura (instituições e ideologias, sistema político e realidade cultural).
O estudante e o professor partem da compreensão da Universidade para compreender a sociedade. Ela é a imagem da sociedade com suas estruturas autoritárias e seus princípios de ‘ordem’ e poder.
Uma das reivindicações presentes na Universidade é a da autonomia universitária e da participação paritária nos órgãos decisórios em todos os níveis, englobado professores, estudantes e funcionários, a real ‘comunidade acadêmica’.
Tais reivindicações datam do início do século. Já o movimento da reforma Universitária de Córdoba, na Argentina, em 1918, pleiteava: a) co-governo estudantil, autonomia política, docente e administrativa da universidade, eleição dos mandatários por assembléias com representação de estudantes, professores e ex-alunos, freqüência não obrigatória e imunidade do campus ante as forças policiais. Entendiam eles que o campus não se restringe à sala de aula; as habitações e o conjunto de ruas do campus fazem parte do regime de autonomia universitária. A autonomia universitária – incluindo a financeira – não é uma via de democratização, é a condição prévia para consegui-la. Não é um fim em si, é um meio que pode ou não ter eficiência, para que as universidades cumpram seu papel. Em suma, um regime de autonomia universitária significa que o governo não meta as mãos na Universidade.
A autonomia está ligada à gratuidade do ensino. Não pode ser democrática uma instituição que, além de não gozar de autonomia, mantém o ensino pago. Daí a defesa do caráter público e gratuito do ensino universitário ser fundamental na luta pela democratização real e não de fachada, fundada na mais ampla liberdade de pensamento de professores e estudantes, que não devem e não podem ser beneficiados ou prejudicados por razões ideológicas.
A Universidade democrática inexiste sem participação paritária estudantil. Nunca ouvimos dizer que os estudantes pretendessem elaborar programas de curso ou impor métodos de pesquisa. Jamais, em seus documentos escritos ou discursos, ouvimos que pretendam prescindir do professor ou indicar-lhe sua ‘ciência’. Apenas lutam pelo direito de participar ativa e não nominalmente na definição das grandes opções da Universidade.
A crise da Universidade consiste em que a sociedade é moderna e ela é uma instituição medieval. Veja-se a organização departamental da Universidade brasileira, que santifica a divisão taylorista do trabalho intelectual, criando muros e não pontes entre as várias especialidades. Os Departamentos se reduzem a ‘panelinhas’ burocráticas inglórias, que lutam pela automanutenção de seus titulares nos cargos. A Universidade brasileira atual converteu-se numa repartição pública, um sistema escalonado de cargos que seus ocupantes de cúpula usufruem como ‘prebendas’ burocráticas, complementando seus salários com financiamento de agências nacionais e internacionais, que nem sempre têm em vista os interesses nacionais, isto é, da maioria da população calada pelo novo arrocho salarial, pela falta de liberdade sindical.
Na Universidade, a relação docente é atravessada pelo Poder, é uma relação de Poder, onde o sistema rígido de ‘provas’, a conformidade do aluno ao programa pré-fixado sem sua participação e o sistema de jubilamento, de exclusão, constituem os pilares da pedagogia burocrática.
É profundamente antidemocrática a existência do segredo no meio universitário: a elaboração do orçamento é secreta – hoje em dia depende mais do Ministério de Palnejamento que da Educação –, o balanço anual das atividades também o é. Uma democracia sem prestação de contas, onde tudo é oculto, não é democracia. Há o perigo das organizações estudantis, de funcionários e de professores incorporarem-se ao sistema, praticando uma das suas regras básicas: decisões tomadas pela cúpula.
A Universidade é rica em princípios e é pobre em organização democrática.
O recrutamento do corpo docente, a origem social dos alunos, na sua maioria provindos das classes alta e média, caracterizam a elitização acadêmica como reprodutora do social mais amplo.
Não há democratização da Universidade sem participação do estudantado inclusive nas Bancas de Concurso de Professores, nas provas didáticas. Uma das condições da criação e transmissão da cultura na Universidade é a possibilidade de discuti-la a todo momento, daí a importância dessa participação. A aquisição do saber deve ser acompanhada da reflexão crítica sobre o mesmo, pois o ideal não é fabricar ‘quadros’ dóceis, submetidos às baterias de testes das empresa privadas, mas homens que vivem as duas dimensões da liberdade: a inserção na sociedade e sua crítica simultânea. O princípio de autoridade na Universidade deve fundar-se no saber e capacidade produtiva; o que ultrapasse isso é autoritarismo grosseiro. Autonomia plena, gratuidade do ensino, publicidade dos atos administrativos e representação paritária de funcionários, alunos e professores são as pré-condições da democracia universitária. Ela porém não deve confinar-se ao campus; de nada vale se a autonomia e liberdade sindical, ampla liberdade de pensamento e expressão não a complementarem.
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Fonte: Folha de S. Paulo, 19.10.1980

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